Canto II
Já neste tempo o lúcido Planeta
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo;
E da casa marítima secreta
Lhe estava o Deus Nocturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
Às naus, que pouco havia que ancoraram.

Dantre eles um, que traz encomendado
O mortífero engano, assi dizia:
– «Capitão valeroso, que cortado
Tens de Neptuno o reino e salsa via,
O Rei que manda esta Ilha, alvoraçado
Da vinda tua, tem tanta alegria
Que não deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te e do necessário reformar-te.

E porque está em extremo desejoso
De te ver, como cousa nomeada,
Te roga que, de nada receoso,
Entres a barra, tu com toda armada;
E porque do caminho trabalhoso
Trarás a gente débil e cansada,
Diz que na terra podes reformá-la,
Que a natureza obriga a desejá-1a.

E se buscando vás mercadoria
Que produze o aurífero Levante,
Canela, cravo, ardente especiaria
Ou droga salutífera e prestante;
Ou se queres luzente pedraria,
O rubi fino, o rígido diamante,
Daqui levarás tudo tão sobejo
Com que faças o fim a teu desejo.»

Ao mensageiro o Capitão responde,
As palavras do Rei agradecendo,
E diz que, porque o Sol no mar se esconde,
Não entra pera dentro, obedecendo;
Porém que, como a luz mostrar por onde
Vá sem perigo a frota, não temendo,
Cumprirá sem receio seu mandado,
Que a mais por tal senhor está obrigado.

Pergunta-lhe despois se estão na terra
Cristãos, como o piloto lhe dizia;
O mensageiro astuto, que não erra,
Lhe diz que a mais da gente em Cristo cria.
Desta sorte do peito lhe desterra
Toda a suspeita e cauta fantasia;
Por onde o Capitão seguramente
Se fia da infiel e falsa gente.

E de alguns que trazia, condenados
Por culpas e por feitos vergonhosos,
Por que pudessem ser aventurados
Em casos desta sorte duvidosos,
Manda dous mais sagazes, ensaiados,
Por que notem dos Mouros enganosos
A cidade e poder, e por que vejam
Os Cristãos, que só tanto ver desejam.

E por estes ao Rei presentes manda,
Por que a boa vontade que mostrava
Tenha firme, segura, limpa e branda,
A qual bem ao contrário em tudo estava.
Já a companhia pérfida e nefanda
Das naus se despedia e o mar cortava:
Foram com gestos ledos e fingidos
Os dous da frota em terra recebidos.

E despois que ao Rei apresentaram
Co recado os presentes que traziam,
A cidade correram, e notaram
Muito menos daquilo que queriam;
Que os Mouros cautelosos se guardaram
De lhe mostrarem tudo o que pediam;
Que onde reina a malícia, está o receio
Que a faz imaginar no peito alheio.

Mas aquele que sempre a mocidade
Tem no rosto perpétua, e foi nascido
De duas mães, que urdia a falsidade
Por ver o navegante destruído,
Estava nua casa da cidade, 
Com rosto humano e hábito fingido,
Mostrando-se Cristão, e fabricava
Um altar sumptuoso que adorava.

Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura,
A cândida Pombinha, debuxada
Sobre a única Fénix, virgem pura;
A companhia santa está pintada,
Dos doze, tão torvados na figura
Como os que, só das línguas que caíram
De fogo, várias línguas referiram.

  Aqui os dous companheiros, conduzidos
Onde com este engano Baco estava,
Põem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus que o Mundo governava.
Os cheiros excelentes, produzidos
Na Pancaia odorífera, queimava
O Tioneu, e assi por derradeiro
O falso Deus adora o verdadeiro.

Aqui foram de noite agasalhados,
Com todo o bom e honesto tratamento
Os dous Cristãos, não vendo que enganados
Os tinha o falso e santo fingimento.
Mas, assi como os raios espalhados
Do Sol foram no mundo, e num momento
Apareceu no rúbido Horizonte
Na moça de Titão a roxa fronte,

Tornam da terra os Mouros co recado
Do Rei pera que entrassem, e consigo
Os dous que o Capitão tinha mandado,
A quem se o Rei mostrou sincero amigo;
E sendo o Português certificado
De não haver receio de perigo
E que gente de Cristo em terra havia,
Dentro no salso rio entrar queria.

Dizem-lhe os que mandou que em terra viram
Sacras aras e sacerdote santo;
Que ali se agasalharam e dormiram
Enquanto a luz cobriu o escuro manto;
E que no Rei e gentes não sentiram
Senão contentamento e gosto tanto
Que não podia certo haver suspeita
Nua mostra tão clara e tão perfeita. 

Co isto o nobre Gama recebia
Alegremente os Mouros que subiam,
Que levemente um ânimo se fia
De mostras que tão certas pareciam.
A nau da gente pérfida se enchia,
Deixando a bordo os barcos que traziam.
Alegres vinham todos porque crêm
Que a presa desejada certa têm.

Na terra cautamente aparelhavam
Armas e munições, que, como vissem
Que no rio os navios ancoravam,
Neles ousadamente se subissem;
E nesta treïção determinavam
Que os de Luso de todo destruíssem,
E que, incautos, pagassem deste jeito
O mal que em Moçambique tinham feito. 

As âncoras tenaces vão levando,
Com a náutica grita costumada;
Da proa as velas sós ao vento dando,
Inclinam pera a barra abalizada.
Mas a linda Ericina, que guardando
Andava sempre a gente assinalada,
Vendo a cilada grande e tão secreta,
Voa do Céu ao mar como ua seta.

Convoca as alvas filhas de Nereu,
Com toda a mais cerúlea companhia,
Que, porque no salgado mar nasceu,
Das águas o poder lhe obedecia;
E, propondo-lhe a causa a que deceu,
Com todos juntamente se partia
Pera estorvar que a armada não chegasse
Aonde pera sempre se acabasse. 

Já na água erguendo vão, com grande pressa,
Com as argênteas caudas branca escuma;
Cloto co peito corta e atravessa
Com mais furor o mar do que costuma;
Salta Nise, Nerine se arremessa
Por cima da água crespa em força suma;
Abrem caminho as ondas encurvadas,
De temor das Nereidas apressadas.

Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,
Vai a linda Dione furiosa;
Não sente quem a leva o doce peso,
De soberbo com carga tão fermosa.
Já chegam perto donde o vento teso
Enche as velas da frota belicosa;
Repartem-se e rodeiam nesse instante
As naus ligeiras, que iam por diante. 

Põe-se a Deusa com outras em direito
Da proa capitaina, e ali fechando
O caminho da barra, estão de jeito
Que em vão assopra o vento, a vela inchando;
Põem no madeiro duro o brando peito,
Pera detrás a forte nau forçando;
Outras em derredor levando-a estavam
E da barra inimiga a desviavam.

Quais pera a cova as próvidas formigas,
Levando o peso grande acomodado
As forças exercitam, de inimigas
Do inimigo Inverno congelado;
Ali são seus trabalhos e fadigas,
Ali mostram vigor nunca esperado:
Tais andavam as Ninfas estorvando
À gente Portuguesa o fim nefando.

Torna pera detrás a nau, forçada,
Apesar dos que leva, que, gritando,
Mareiam velas; ferve a gente irada,
O leme a um bordo e a outro atravessando;
O mestre astuto em vão da popa brada,
Vendo como diante ameaçando
Os estava um marítimo penedo,
Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.

A celeuma medonha se alevanta
No rudo marinheiro que trabalha;
O grande estrondo a Maura gente espanta,
Como se vissem hórrida batalha;
Não sabem a razão de fúria tanta,
Não sabem nesta pressa quem lhe valha:
Cuidam que seus enganos são sabidos
E que hão-de ser por isso aqui punidos. 

Ei-los sùbitamente se lançavam
A seus batéis veloces que traziam;
Outros em cima o mar alevantavam
Saltando n' água, a nado se acolhiam;
De um bordo e doutro súbito saltavam,
Que o medo os compelia do que viam;
Que antes querem ao mar aventurar-se
Que nas mãos inimigas entregar-se. 

Assi como em selvática alagoa
As rãs, no tempo antigo Lícia gente,
Se sentem porventura vir pessoa,
Estando fora da água incautamente,
Daqui e dali saltando (o charco soa),
Por fugir do perigo que se sente,
E, acolhendo-se ao couto que conhecem,
Sós as cabeças na água lhe aparecem:

Assi fogem os Mouros; e o piloto,
Que ao perigo grande as naus guiara,
Crendo que seu engano estava noto,
Também foge, saltando na água amara.
Mas, por não darem no penedo imoto,
Onde percam a vida doce e cara,
A âncora solta logo a capitaina,
Qualquer das outras junto dela amaina. 

Vendo o Gama, atentado, a estranheza
Dos Mouros, não cuidada, e juntamente
O piloto fugir-lhe com presteza,
Entende o que ordenava a bruta gente;
E vendo, sem contraste e sem braveza
Dos ventos ou das águas sem corrente,
Que a nau passar avante não podia,
Havendo-o por milagre, assi dizia:

  – «Ó caso grande, estranho e não cuidado!
Ó milagre claríssimo e evidente,
Ó descoberto engano inopinado,
Ó pérfida, inimiga e falsa gente!
Quem poderá do mal aparelhado
Livrar-se sem perigo, sàbiamente,
Se lá de cima a Guarda Soberana
Não acudir à fraca força humana? 

«Bem nos mostra a Divina Providência
Destes portos a pouca segurança,
Bem claro temos visto na aparência
Que era enganada a nossa confiança;
Mas pois saber humano nem prudência
Enganos tão fingidos não alcança,
Ó tu, Guarda Divina, tem cuidado
De quem sem ti não pode ser guardado!

«E, se te move tanto a piedade
Desta mísera gente peregrina,
Que, só por tua altíssima bondade,
Da gente a salvas pérfida e malina,
Nalgum porto seguro de verdade
Conduzir-nos já agora determina,
Ou nos amostra a terra que buscamos,
Pois só por teu serviço navegamos.»

Ouviu-lhe estas palavras piadosas
A fermosa Dione e, comovida,
Dantre as Ninfas se vai, que saüdosas
Ficaram desta súbita partida.
Já penetra as Estrelas luminosas,
Já na terceira Esfera recebida
Avante passa, e lá no sexto Céu,
Pera onde estava o Padre, se moveu.

E, como ia afrontada do caminho,
Tão fermosa no gesto se mostrava
Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho
E tudo quanto a via, namorava.
Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,
Uns espíritos vivos inspirava,
Com que os Pólos gelados acendia,
E tornava do Fogo a Esfera, fria.

E, por mais namorar o soberano
Padre, de quem foi sempre amada e cara,
Se lh' apresenta assi como ao Troiano,
Na selva Ideia, já se apresentara.
Se a vira o caçador que o vulto humano
Perdeu, vendo Diana na água clara,
Nunca os famintos galgos o mataram,
Que primeiro desejos o acabaram.

Os crespos fios d' ouro se esparziam
Pelo colo que a neve escurecia;
Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,
Com quem Amor brincava e não se via;
Da alva petrina flamas lhe saíam,
Onde o Minino as almas acendia.
Polas lisas colunas lhe trepavam 
Desejos, que como hera se enrolavam. 

Cum delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha é natural reparo;
Porém nem tudo esconde nem descobre
O véu, dos roxos lírios pouco avaro;
Mas, pera que o desejo acenda e dobre,
Lhe põe diante aquele objecto raro.
Já se sentem no Céu, por toda a parte,
Ciúmes em Vulcano, amor em Marte. 

E mostrando no angélico sembrante
Co riso ua tristeza misturada, 
Como dama que foi do incauto amante
Em brincos amorosos mal tratada,
Que se aqueixa e se ri num mesmo instante
E se torna entre alegre, magoada,
Destarte a Deusa a quem nenhua iguala, 
Mais mimosa que triste ao Padre fala:

«Sempre eu cuideí, ó Padre poderoso,
Que, pera as cousas que eu do peito amasse,
Te achasse brando, afabil e amoroso,
Posto que a un contrario lhe pesasse;
Mas, pois que contra mi te vejo iroso,
Sem que to merescesse nem te errasse,
Faça-se como Baco determina;
Assentarei, enfim, que fui mofina.

Este povo, que é meu, por quem derramo
As lágrimas que em vão caídas vejo,
Que assaz de mal lhe quero pois que o amo,
Sendo tu tanto contra meu desejo,
por ele a ti rogando, choro e bramo,
E contra minha dita, enfin, pelejo,
Ora pois, porque o amo, é mal tratado,
Quero-lhe querer mal: sera guardado.

«Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,
Que pois eu fui ...» E nisto, de mimosa,
O rosto banha em lágrimas ardentes,
Como co orvalho fica a fresca rosa.
Calada um pouco, como se entre os dentes
Lhe impedira a fala piedosa,
Torna a segui-la; e indo por diante,
Lhe atalha o poderoso e grão Tonante.

E destas brandas mostras comovido,
Que moveram de um tigre o peito duro,
Co vulto alegre, qual, do Céu subido,
Torna sereno e claro o ar escuro,
As lágrimas lhe alimpa e, acendido,
Na face a beija e abraça o colo puro;
De modo que dali, se só se achara,
Outro novo Cupido se gerara.

E, co seu apertando o rosto amado,
Que os saluços e lágrimas aumenta,
Como minino da ama castigado,
Que quem no afaga o choro lhe acrecenta,
Por lhe pôr em sossego o peito irado,
Muitos casos futuros lhe apresenta.
Dos Fados as entranhas revolvendo,
Desta maneira enfim lhe está dizendo:

– «Fermosa filha minha, não temais
Perigo algum nos vossos Lusitanos,
Nem que ninguém comigo possa mais
Que esses chorosos olhos soberanos;
Que eu vos prometo, filha, que vejais
Esquecerem-se Gregos e Romanos,
Pelos ilustres feitos que esta gente
Há-de fazer nas partes do Oriente, 

«Que, se o facundo Ulisses escapou
De ser na Ogígia Ilha eterno escravo,
E se Antenor os seios penetrou
Ilíricos e a fonte de Timavo,
E se o piadoso Eneias navegou
De Cila e de Caríbdis o mar bravo,
Os vossos, mores cousas atentando,
Novos mundos ao mundo irão mostrando. 

«Fortalezas, cidades e altos muros
Por eles vereis, filha, edificados;
Os Turcos belacíssimos e duros
Deles sempre vereis desbaratados;
Os Reis da Índia, livres e seguros,
Vereis ao Rei potente sojugados,
E por eles, de tudo enfim senhores,
Serão dadas na terra leis milhores. 

«Vereis este que agora, pres[s]uroso,
Por tantos medos o Indo vai buscando,
Tremer dele Neptuno de medroso,
Sem vento suas águas encrespando.
Ó caso nunca visto e milagroso,
Que trema e ferva o mar, em calma estando!
Ó gente forte e de altos pensamentos,
Que também dela hão medo os Elementos! 

«Vereis a terra que a água lhe tolhia,
Que inda há-de ser um porto mui decente,
Em que vão descansar da longa via
As naus que navegarem do Ocidente.
Toda esta costa, enfim, que agora urdia
O mortífero engano, obediente
Lhe pagará tributos, conhecendo
Não poder resistir ao Luso horrendo.

 «E vereis o Mar Roxo, tão famoso,
Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;
Vereis de Ormuz o Reino poderoso
Duas vezes tomado e sojugado.
Ali vereis o Mouro furioso
De suas mesmas setas traspassado;
Que quem vai contra os vossos, claro veja
Que, se resiste, contra si peleja. 

«Vereis a inexpugnábil Dio forte
Que dous cercos terá, dos vossos sendo;
Ali se mostrará seu preço e sorte,
Feitos de armas grandíssimos fazendo.
Envejoso vereis o grão Mavorte
Do peito Lusitano, fero e horrendo;
Do Mouro ali verão que a voz extrema
Do falso Mahamede ao Céu blasfema.

«Goa vereis aos Mouros ser tomada,
A qual virá despois a ser senhora
De todo o Oriente, e sublimada
Cos triunfos da gente vencedora.
Ali, soberba, altiva e exalçada,
Ao Gentio que os Ídolos adora
Duro freio porá, e a toda a terra
Que cuidar de fazer aos vossos guerra. 

«Vereis a fortaleza sustentar-se
De Cananor, com pouca força e gente;
E vereis Calecu desbaratar-se,
Cidade populosa e tão potente;
E vereis em Cochim assinalar-se
Tanto um peito soberbo e insolente
Que cítara jamais cantou vitória
Que assi mereça eterno nome e glória. 

«Nunca com Marte instruto e furioso
Se viu ferver Leucate, quando Augusto
Nas civis Áctias guerras, animoso,
O Capitão venceu Romano injusto,
Que dos povos de Aurora e do famoso
Nilo e do Bactra Cítico e robusto
A vitória trazia e presa rica,
Preso da Egípcia linda e não pudica, 

«Como vereis o mar fervendo aceso
Cos incêndios dos vossos, pelejando,
Levando o Idololatra e o Mouro preso,
De nações diferentes triunfando;
E, sujeita a rica Áurea Quersoneso,
Até o longico China navegando
E as Ilhas mais remotas do Oriente,
Ser-lhe-á todo o Oceano obediente. 

«De modo, filha minha, que de jeito
Amostrarão esforço mais que humano,
Que nunca se verá tão forte peito,
Do Gangético mar ao Gaditano,
Nem das Boreais ondas ao Estreito
Que mostrou o agravado Lusitano,
Posto que em todo o mundo, de afrontados,
Re[s]sucitassem todos os passados.»

Como isto disse, manda o consagrado
Filho de Maia à Terra, por que tenha
Um pacífico porto e sossegado,
Pera onde sem receio a frota venha;
E, pera que em Mombaça, aventurado,
O forte Capitão se não detenha,
Lhe manda mais que em sonhos lhe mostrasse
A terra onde quieto repousasse. 

(...)

                                                                                            [Luís de Camões]

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