SOMOS ANIMAIS DO EMPERADOR EXTRAVIADOS NO BOSQUE DOS SIGNOS

 

O mundo é independente da minha vontade.

LUDWIG WITTGENSTEIN

 

A palavra é um naufrágio lento e inevitável.

LLUÍS SOLÀ

 

No princípio foi a ação. E a língua. Como um cálice de vidro. Como um espelho. Como um palimpsesto. Camadas escritas e apagadas. Reescritas. Uma língua como a beira do mar. A beira e o mar. E as conchas. O rasto das estrelas de simetria radial. Das algas. Dos objetos que as águas retornam. Canas. Sapatos sem solas. Garrafas sem mensagens. Esqueletos brancos e limpados. A beira e o mar. Os sinais dos pássaros que debruam as águas. Que as orlam, as ponteiam, as escrevem. A areia: como uma enorme folha. Onde estamos. Onde está o firmamento e o chão. A inaudível lua. As montanhas e o seu coração. Como uma imensa página em branco. Onde nos escrevemos. Onde nos reescrevemos para ser. Para nos fazermos. Para sermos. Porque estou triste? Uma língua como uma máquina que pesponta os pedaços do mundo. Que pesponta o cobertor do tempo que se alarga e se estreita e se desfaz nas águas das coisas visíveis e das invisíveis. Uma mão sem mão. Lembras? Como uma cidade antiga. Com os bairros novos e os velhos. As ruelas estreitas e as largas avenidas. E as praças duras. As casas que já não são o que foram. Algumas, caídas parcialmente. Refeitas, outras. Derrubadas. Esta praça que agora contemplas era uma ilha de casas. E de habitantes. E de histórias. Vidas que respiram debaixo das árvores sombreadas. Debaixo das lajas. Sem Stolpersteine. Sem pedras-obstáculo. Uma ausência incompleta. Palavras que retornam à fala. Que de novo respiram. Que vivem uma vida nova. A vida das palavras que desponta na entreluz do mato. Os segredos das suas origens. Com o tempo, cheias de sentidos e significados, cavernas e buracos. Uma língua como um atlas. Os hemisférios. Cerebrais. Com os tigres de Bengala sem gravidade. Os continentes que existem e os que não existem. Com os países que são e os que não são. Os rios que voam pelos céus. Os mares onde boiam as jangadas continentais. À deriva. Os limites móveis. Que oscilam e se anulam. Agora posso pensar um pensamento. Agora não. A rosa ausente. A fala criadora. A similitude. Decalcar as colinas e os animais ínfimos. As plantas que ninguém viu. Que ninguém batizou. Que ninguém assinalou jamais com um dedo nem murmurou nome algum. O seu nome. Nenhum olho pensador. Nenhuma língua viajante. Da coisa para o céu do cérebro. E num dos ângulos os números sagrados. E os números profanos. O sagrado dos mistérios. A palavra. Os hieroglíficos. A linguagem contorcista. Que se dobra sobre si mesma. Que se faz objeto do seu próprio discurso. Que se move no fio da navalha. Em trânsito. Que vive nos interstícios das falas. Que escava o seu próprio corpo à procura da escrita original. Como uma arqueologia. Como uma autofagia. Os logogrifos. E os animais sem nome que percorrem os seus domínios e os seus subsolos. Os oráculos seminais. A fala que se interroga. A fala que não diz nem cala. A fala-silêncio. As terras imateriais da fala. Um campo sem confins. Das falas que se olham aos espelhos e reconhecem a existência da sua inexistência. São porque não são. Casa. Árvore. Oliveira que não dará frutos este ano. Onde estão as abelhas polinizadoras? A fonte que jorra perto da ermida que se desmorona. Perto das represas onde flutua a alga verde. As plantas aquáticas. E as rãs cantoras. O círculo onde estava a palmeira. O seu tronco. As palmas. A sua sombra sobre a terra. Depois de limpar o mato da terra. Com a pequena enxada. Antes que o sol escale o firmamento. Esculpir agora o nada enquanto esvazio o tronco. O seu durame. Como de terra vermelha. Como de terra amarela. Como a extração da pedra filosofal. Da pedra da folia. O tronco-crâneo. Com os instrumentos adequados. Uma pedra no cérebro. Desmontando a matéria. Que se queixa. Que dói. À procura do que não está ali. O nenúfar. A larva exterminadora que faz casulos. Dentro do tronco. Dentro da forníce do vazio. O relato. O curso deste discurso. Sincopado. Desunido. Interrompido. Movido pelo desejo. Inconcluso. Que se interroga e se responde. E se nega. E se volta a negar. Que quereria expor o aberto. Nós, apaixonados interrogadores. Perguntar é perguntar-se. Mas, quem fala? O nada da palavra. O acontecimento e o discurso. Ir e voltar e voltar dum ao outro. Não deixamos de ir. Não deixamos de voltar. Porque esta marca sobre as coisas, como um estigma inapagável? A linguagem do mundo que não fala. Esférico. A mudez dos prados nevados entre as serras. O silêncio da natureza muda. Dos seus contornos. As linhas da mão aberta. As dobras dos obstáculos. Os relevos da língua. O céu misterioso na terra incorpórea. A duração da palavra sonâmbula. Crédulos da incredulidade. Que é o que quer a rola que não deixa de arrulhar no meio desta tarde dominical? Fala-me ela, hermeneuta? Ouviu o meu murmurar ensimesmado e confundiu-me com uma implume semelhante? Não posso sentir a tua dor. Um organismo vivente, a linguagem. Complicado. A gramática da ordem natural. Profunda e superficial. O ralo por onde escoa o nosso olhar inteligente. Erramos porque somos espertos e lúcidos. Os jogos. E a língua. Como uma caixa de ferramentas ordenadas. Múltiplas. Os jogos de linguagem. Palavras-braços. Palavras-ponteiros. Palavras-palavras. A vertigem. O clarão do fogo breve. A noite iluminada que colapsa. A mosca. A garrafa. A filosofia. A língua enfeitiçada. As mecânicas da sua mecânica. As ordens ocultas que governam o firmamento constelado de astros. E o seu reflexo nas superfícies lisas e brilhantes. Ideias celestiais. Cavernícolas. Assim o mundo diante dos nossos olhos atónitos. Os olhos que veem porque falam. E porque falamos, podemos desordenar o caos. Construí-lo. Sentir a sua comoção. Uma forma de vida, a linguagem. Formas de vida. Somos animais que pertencem ao Imperador. Que apenas podem sabotar a língua desde a língua. Não há escapatória possível. Tudo acontece no seu seio. O mundo não fala. Não é ventríloquo. Quem o é somos nós, que falamos por ele e por nós. Taxonomistas empedernidos, nós. Os que de longe parecemos moscas. A gramática. Contra a gramática. Apoiados na gramática. Para rebentá-la. A linguagem doente de doença. Fingir a doença para senti-la. Para sentir. Como uma vacina. Como um antídoto. Confusos pela gramática, fugimos da língua para chegar à língua. Dinamitamos as pontes. Envenenamos as águas e o ar. Enchemos de vírus todos os sistemas. Todas as máquinas e artefatos. Todas as engrenagens. Fugimos sem encontrar refúgio possível. Uma fuga impossível. Apenas fazemos por contornar aquilo que nunca acharemos. A procura de outra língua. Das outras línguas. A fala plural. A impossibilidade. O eclipse do dizer. Podemos verbalizar o impossível? Dizer o impossível? Caminhamos pelos fios das fronteiras. Malabaristas. Obstinados. A armadilha da fuga. A fala não expõe, não oculta. Apenas indica. Somos a ausência de tudo e o seu abrigo. Acerquemos, pois, a orelha aos troncos. Escutemos a música do tilo e da bétula. A música da pedra feita madeira. A primeira terra. Com a nossa língua entumecida. Dentro do vazio do signo. Através do arbitrário ralo. Voltamos para ao chão áspero! Mesmo além dos castanheiros está o mundo. Tudo é ritmo. Assim a poesia. 

 

Joan Navarro. Oliva e Valência, agosto-setembro de 2016.

 

[Texto lido na quinta edição de Raias Poéticas. Afluentes ibero-afro-americanos de arte e pensamento, que teve lugar os dias 7 e 8 de outubro de 2016 em Vila Nova de Famalicão, Portugal.]

 

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