estas algumas horas 

 

1

 

recordaremos estas algumas horas, o seu intacto

celofane. dentro

com inquietação nos apercebemos da sapatilha azul,

e as figuras cromadas da simetria: um tigre

a dilacerara, não fora o estridente apito

dos parafusos. "foolish things". quantas horas

escolhendo os fósforos, a marca

secreta das conservas, e estas imagens

igualmente fúteis. eis como

um osso curva

           o teu choro no meio das gruas,

os longos alicates, e em cima da mesa

a luz era clara, eis a marca, o teu

           uivo.

 

2

 

o mais ligeiro é o gnomo que pinta acessos

de ironia no tapume. algumas estas horas

o visitaremos, abrindo

          rapidamente a caixa onde o sabão

nos esteve atraiçoando.

e ainda as impressões digitais espalhadas na mesa

não teriam permitido reconhecê-lo; tanto

o pavor nos inclina os ramos mais altos,

perturbando a passagem dos navios.

 

3

 

algumas estas horas os resultados surgem

a meio da mesa, breves pastilhas brancas

que envenenam os teus

                            carinhosos insetos.

foi então que o amei? estes ligeiros

aeroplanos,

                   as naus,

                                o azul hipopótamo,

estas coisas incolores abrem ouvidos

na arrogância dos sinos.

e estes lugares sem água, quem dentro

da silenciosa sinagoga

                 deixaria de escutá-los?

 

4

 

longas estas algumas horas telescópicas quando

a limonada empalidece nos vastos balcões abertos

sobre a nossa impaciência. seguramos

com alguma razão os telefones

intactos da areia,

derramando no tapete estridentes migalhas.

de petrópolis, alguma esta hora nos trará

o celofane branco,

                             a gelatina,

                                             o sopro.

deitaremos o corpo nas esquinas cromadas, respirando

a desolação dos laços, os estreitos

canais do ciclone. ou será

que me iludiu o seu abismo?

estas garrafas de celuloide e lágrimas, quem

nos virá dar em troca os desejados

pesadelos? algumas estas horas

estamos sentados no azebre com uma torquês

em cada mão, e os telefones luminosos.

os nossos filhos crescem

com barbatanas, olhos verdes, sensações de imortalidade:

será possível entendê-los? ou foi excessivo

o consumo dos aromas, das vistas sobre o lume,

das esplanadas quentes ao lado do mar?

                                                               quem

de tão cerca, nos visitará nas estas

algumas horas de sofrimento ter-mi-nal? e os

cromos implacáveis, a colecão de passaportes?

o daguerreótipo das miniaturas?

algumas horas estas alongam-se nos passeios

e nos muros, ouvindo ao telefone

o consolo de muitas aves.

"não! não é possível! veja: esta

limonada transparente, dir-se-ia de água!

 

5

 

a conclusão parece próxima, mas

poderá o gnomo recusá-la? estas questões

sujam indevidamente as douradas vidraças

do envelhecer. como evitar

o que recordaremos, estas algumas horas?

and yet

            these foolish things

                                         remind me of you

tu que pousas os meus olhos e as minhas mágoas

e estes embrulhos transparentes, de ligeiras

asas na sapatilha azul.

ó que estas algumas horas sentadas no choro

não quebrem a aniurada das amáveis

chávenas!

 

assim as recordaremos, e o celofane amarrotado.

 

[António Franco Alexandre, Os objectos principais, Centelha, 1979]

                                                                            

 

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