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a Samuel Rawet
Quando a noite se
cristaliza e é uma coisa,
um silêncio, uma poeira sobre o móvel, uma janela
sem ruídos, um retrato que dói de não doer,
ou, no canto de um quarto, dois quietos sapatinhos de criança.
Quando a noite é
totalmente uma coisa
a que não indagamos, fósforo, som de buzina, ou dimensão
coisa reconciliada, coisa
onde não pomos traço ou acidente nosso, a não ser esta calma
tão parecida com o olhar de um bicho ou de um velho sábio.
Quando a noite é deste
modo uma coisa
e o tempo, sem adjetivos, rodeia a nossa carne
com uma ágil porção de peixes musicados.
Então, sim, não nos
metem mais medo
nem a lua com os seus olhos de chuva,
nem a sombra do tigre sobre os nossos caminhos,
nem a horrível surpresa das tarântulas
que a flauta de sombrios pastores convoca
para os buracos abertos na previsão dos planos.
Então, sim,
compreendemos
porque a importância de todos os oceanos não é mais solene
do que a de uma só gota de água,
porque somos uma parte daquela sombra nos quintais, ou
daqueles troncos,
porque algo de nós se instala na paz daquele encontro da sombra com os
troncos,
porque a tempestade dialoga, ao mesmo tempo, com a vidraça
dos berçários e com o pânico dos náufragos,
porque a presença do mistério é tão natural e doce, como
natural e doce é o deslumbramento com a nudez da mulher amada,
porque a Morte é admiravelmente simples como um fruto que seca,
porque a Vida é movimento e em todas as coisas se entranha,
incapturável como o risco de uni vôo ou a trajetória de um gesto.
Então, sim,
compreendemos.
[Moacyr
Félix, Singular Plural,
Editora Record, 1988] |
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