Jorge Luis Borges

- "Sim.Quando chegares a minha idade, terás perdido
quase por completo a visão "
Jorge Luis Borges em: O outro.

Deve ser a cegueira uma das formas
de ver com outras claridades
sombras da alma.
Todas são feitas entre luz e sombras.
Deve ser o apurar dos sons
e ouvir que em labirintos passos ecoam.
Depois o tato um dos nossos dons
vai substituindo imagens, e se olha
para Deus de uma forma mais próxima.
Tateando com o pensamento
Deus que é invisível pode aparecer.

Deus também é certamente
a claridade.
E a sombra só existe se há luz.

Nas sombras talvez se vença o tigre.
Na claridade um espelho nos permite
jogar muita luz nos olhos dos tigres.
Sempre combateremos.

Queria conhecer o mundo
partindo de um caleidoscópio sonorizado,
ouviria então Gardel, Astor Piazzolla
evocando Buenos Aires
e depois iria desfolhando a névoa do dia
abrindo janelas imaginárias
desafiando máscaras do real.

Passageiro de páginas e páginas,
catador de metáforas seculares.
Apagador de incêndios tentando
encontrar algo que tenha escapado das cinzas
da biblioteca de Alexandria.
Nada? Então se "nada se cria tudo
se transforma".

Limpei as cinzas da noite
e o dia veio trazendo
½ dúzia de pássaros.
Vi jogarem pragas e mistérios nos lagos.
Vi num dia o desperdício de séculos.

Vi moedas em que as caras e as coroas
diziam algo que só escutavam os colecionadores,
sons do linguajar dos metais.
As moedas como os sinos falam.

Num microscópio há gigantes ocultos.
Num telescópio os astros
se aproximam e assim nossos olhos
se aliam aos vidros para mudar o mundo.

É uma questão de ótica.
A antiguidade também nos faz ver mais longe
flui na ampulheta as páginas da memória,
flui junto a areia e ao rio carregando o tempo
escorrendo águas entre o arquipélago da memória.

Tudo foi feito com parábolas, existir
pode ser a metáfora de uma parábola não decifrada.

No futuro alguns pensamentos
serão filhos das parabólicas.

Sei, dizias sobre as coisas:
Nunca saberão que partimos num momento.

Sei que bem me lembro de ti,
vives na memória
hóspede entre vários livros
e entre eles almas
a nos espiar das inúmeras estantes de antigos
calendários.

Deve existir em todo mundo
centenas de Praças 1° de Maio.

Todas com mães e suas razões
e os diferentes tigres.

Um dia vi um filme
em que no Vietnã uma menina corria
de um tigre de napalm
e nunca mais esqueci .
Também vi um pequeno chinês
na Praça da Paz Celestial
disposto a enfrentar sozinho
um tigre de ferro e fogo
e nunca mais esqueci.

Visíveis ou não
muitos são os tigres
e se reproduzem como se espelhos
lhes doassem imagens e semelhanças.

São de diferentes
naturezas os tigres.

Vi um tigre de papel
dobrei, dobrei fiz um aeroplano.
Vi outro tigre, e mais outro
fiz um barco, e fiz algo incompreensível.

Vários dos tigres que vi foram úteis.
Claro nem todos.

Existem outros tigres mortais
o zoológico aberto é muito maior
nele os aviões bombardeiam as Ilhas Malvinas
e estas feras ao se fechar os livros
não calam.

Um livro fechado
tem várias bocas fechadas.

A biblioteca é assim
algo multifalante
e nada a doma: Impossível.

Li o que escrevestes
sobre o imperador Che Huang-ti
que ordenou a construção
da Muralha da China
e a queima de todos os livros
anteriores a ele.
Fico imaginando livros
transportados pelos lados dos muros.

Vamos elogiar as sombras
e todos os crepúsculos.
E dizias em James Joyce:
Em um dia do homem estão os dias
do tempo,desde o inconcebível
dia inicial do tempo
...................................
-me, Senhor, coragem e alegria
para escalar o cume deste dia.

Antes do mundo ser mundo
Deus já existia e era dividido
em Pai, Filho e Espírito Santo.

É além dos limites o compreender.

E se decifro apenas um tigre como saber
de onde partirá o combate?
Para onde a luz se encaminhará
após as sombras?

Mudamos com mudam as sombras.
A luz nos transforma antes de vir o pó.

Os livros também
podem conter tigres.
e há vários que rondam
entram e saem
da História Universal da Infâmia.

Quando o sol se põe
a lua entra em cena,
os astros do céu usam um camarim
que fica do outro lado do mundo.

Talvez todas as tropas
esperem por reforços
bem antes e depois do general Lee.

A defesa do Homem
é sempre possível
do outro lado do mundo.

A salvação dizem
está no outro mundo
desde que aqui aprendida.
Na verdade nenhum de nós é daqui:
Somos todos passageiros.

Tudo nada mais é do que um grande treino.
A eternidade precisa de exercícios.
Deus sempre foi mágico.

Etecétera é uma palavra
pesada por carregar tantas outras.

O universo desta noite contem a vastidão
do esquecimento e a precisão da febre.

Devemos fazer alguma temperatura
além desta conhecida,
e se possível nada esquecer.

Alquimista de letras,
acendedor de metáforas,
porteiro de frases.

A vida resiste e é cheia de espetáculos.
Os volumes de Borges
confirmam os ingressos.

[Luís Sèrgio dos Santos]

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