Cartas e ais | ||
É o que te digo, Fernando, as paisagens já não contêm sol ou sombra, navios ou cais. Horas mais absurdas marcam os relógios digitais. Há um novo êxtase. As viagens e tudo o que havia hoje não há mais. Mesmo as histórias não são de todo contáveis, há imposturas demais. Palavra e mistério vão como as aves pousar nos cabos elétricos. Não há ninhos nas cabeças dos poetas. esse emaranhando subversivo. E catedrais! Qualquer música torna a chuva vesga mas quem – como o Outro – ainda escreve odes? E nao me digas das cousas que odiais. O tambor basco sintetizou-se no pagode e o remédio para a dura realidade não é mais o ópio, o sonho, o amar a Natureza. (Nem todos passamos por teu crivo) Nem mares transcendentais nem florestas de alheamento: algum predador globalizado tratou de sitiá-los e o esquecer-se de si mesmo não é a tônica do momento. Se me proponho escrever um poema penso nos homens que não chegam nem partem – essas sombras inautênticas dos nossos ancestrais. Mas tenho suficiente repugnância matutina, um mouse-pad vermelho um longo outono pela frente e a leitura do Inferno de Dante. (Não é com fogo e gelo que se assina a fatura do novo milênio?) Ademais, meu caro, restam-nos hoje palavras despidas de todos os mistérios. E nem podemos simplesmente amá-las, tolos que somos, e mortais. As palavras, Fernando, tornaram-se mercadoria vendida a esmo. Verso e espanto e testemunho – tigres-signos em suas celas – perderam sua fatalidade. Somos apenas números registrados na vara cível carregando no peito as credencias. e assim nós morremos nossa vida, tão atentos à vida que nos mata por não termos qualquer barco qualquer porto nenhum naufrágio que nos salve. Mas ai, Fernando, sinto-me ainda tão capaz.
[Rosane Ramos] |
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