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Em abril chegam os gatos: à frente
o mais antigo, eu tinha
dez anos ou nem isso,
um pequeño tigre que nunca se habituou
às areias do caixote, mais foi quem
primeiro me tomou o coração de assalto.
Veio depois, já em Coimbra uma gata
que não parava em casa: fornicava
e paria no pinhal, não l'he tive
afeição que durasse, nem ela a merecia,
de tão puta. Só muitos anos
entrou em casa, para ser
senhor dela, o pequeno persa
azul. A beleza vira-nos a alma
do avesso e vai-se embora.
Por isso, quem me lambe a ferida
aberta que me deixou a sua morte
é agora uma gatita rafeira e negra
com três ou quatro borradelas de cal
na barriga. É ao sol dos seus olhos
que talvez aqueça as mãos, e partilhe
a leitura do "Público" ao domingo.
[O Sal da Língua
]
Δ
Sobre
els gats
A l'abril arriben els gats: al davant
el més
antic, jo tenia
deu anys o ni això,
un petit tigre
que no s'avesà mai
a l'arena de la caixa, però fou qui
primer em guanyà el cor d'assalt.
Vingué després,
ja a Coïmbra, una gata
que no parava a casa: fornicava
i paria al pinar, no vaig tenir-li
afecte durador, ni
ella el mereixia,
de tan puta. Només molts anys
després entrà a casa, per a ser-ne
senyor, el petit
persa
blau. La bellesa ens gira l'ànima
del revés i
s'esvaneix.
Per això, qui em llepa la ferida
oberta
que em deixà la seua mort
és ara una gateta vulgar i
negra
amb tres o quatre taques de calç
al ventre.
És al sol dels seus ulls
que potser m'escalfe les mans
i compartesca
la lectura del Publico els diumenges.
[Traducció de Vicent Berenguer]
Δ
Retrato Ardente
Entre
os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
[Obscuro
Domínio]
Δ
Espelho
Que rompam as águas:
é dum corpo que falo.
Nunca tive outra pátria,
nem outro espelho,
nem outra casa.
É dum rio que falo,
desta margem onde soam ainda,
leves,
umas sandálias de oiro e de ternura.
Aqui moram as palavras;
as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.
Aqui conheci o desejo
mais sombrio,
mais luminoso,
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.
E sem pre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.
E tudo era água,
água,
desejo só
dum pequeno charco de luz.
De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?
Um corpo amei,
um corpo, um rio,
im pequeno tigre de inocência,
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.
Quem não amou
assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.
Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.
Dum corpo falei:
que rompam as águas.
Δ
Retrato
Tigre adormecido,
coração do dia.
Rostro semeado
de melancolia.
Noite transparente.
Primavera escura.
Sombra rodeada
de mar e brancura.
Tigre adormecido.
Coração do dia.
Puro e violento
incêndio de alegria.
[Os
Amantes sem Dinheiro, 1950]
Δ
Entre os teus lábios
Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
Δ
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