[Ernest Pepin] |
Solo de ilhas |
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O mar é um violão que chora A história dos homens Tem mesmo quebra-mares Mexe seu canto fulminado À beira da memória E nos recordamos De onde viemos Como os órfãos Moramos doravante no sal Uma terra salgada Uma salgadura de ilhas proféticas Deve-se esquecer a dor da partida Os navios negreiros A porta do não retorno Recosturar a pele do mar E inventar a chegada Com um arco-íris nos olhos Com o imaginário dos amanhãs nas mãos O Caribe nunca se entregou Sonho plural Ele pertence àqueles que sabem sonhar Com uma mestiçagem de dores Ilhas tambores Solo de ilhas Sinfonia de luzes Ilhas cidadelas Memórias fascinadas O mar toca seu jazz de faíscas E pede às árvores Inventarem novas raízes
Solo de ilhas Não arranhar a dor do sol poente As raças vieram abolir toda raça Espalhar suas cores na memória do mar E nomear o homem das chuvas novas De quatro esquinas da terra redonda Como infâncias recomeçadas As raças vieram sonhar com outras cores Mesclar as línguas de marinheiros Ao canto da luz Não censurar as mulheres violadas Elas foram nossas primeiras pintoras Da cabaça grávida Do ninho dos pássaros migradores Da eloquência da concha Nascemos de um milagre de água salgada Nascemos de todo o azul De todo luto do antes Da vulva dos vulcões vermelhos Desse estremecimento de sombras errantes De todas essas ilhas vorazes de sangue negro
Solo de ilhas Corpos despojados para encher contos De um Deus mais frágil que sua cruz De silêncios ilegíveis E de balbucios de estrelas Uma língua nos amarra à folhagem E faz amor com as línguas do mundo Corpos subterrâneos Onde se esconde a memória dos deuses Passageiros clandestinos Forças curadas por um milagre Possede a noite, dizem E ganharás o dia Um tambor é o suficiente Para suportar o peso do céu Para atravessar o real Reanimar os ancestrais do Benim Da Nigéria e do Congo Os rios em transe tagarelam línguas O sangue do galo se recorda Mas não esquece a astúcia da serpente Nem a cavalgada dos Espíritos Nem a cadência do invisível Vodu Santeria Candomblé São viagens nos espelhos Sóis sem controle Reverberações da outra borda No epicentro da dor O enraizamento dos umbigos E a inédita aliança do aqui-dentro Corpos montados Corpos desmontados Os Deuses escondidos tem fome de ilhas Os Deuses da Índia nos recordam Que somos a oferenda do sacrifício E o perfume dos povos antigos Ilhas abertas a toda linguagem divina A toda maravilha extirpada
Solo de ilhas Fala de ilhas crioulas A cabeça atada ao novo sonho A terra mesclada a sua partida Um contista vela o sonho Desfaz a pele da noite Um grão de sal sobre a língua É o suficiente para atravessar o inverso E nós, respondedores Entramos na ronda das ilhas Na maravilha de seus sustenidos Ele nos engorda Nos amarra ao crioulo Ao seu golpe de língua silvestre Uma tocha de fumaça sobre a cabeça Ele carregam as tábuas de água E é sésamo para nossas almas Metamorfose em novo homem Com asas para voar O corpo livre consagrado ao vento crioulo Um prazer mantém a noite de pé Como um país que ganha raízes Em seu cultivo de ondas rosas E o leilão de seu porto O conto enfim nos desembarca em casa Em solo de ilhas crioulas Não esquecer o rum Esse velho contista ao fogo sagrado Essa liberdade que desvela os sóis interiores Os quilombolas mais secretos O frágil pássaro de nossos silêncios O conto tece a tela das ilhas Como uma aranha submarina Um riso de água salgada nos ata a nós mesmos A bela palavra engole o sol A bela palavra é um negro quilombola
Solo de ilhas Que resistem como tormentas Que resistem como mulher cupim Que resistem como mulher Rins amarrados às entranhas da vida Como presenças solares Insubmissas na enseada dos dias ruins Carregadas de velhas cóleras contra as noites Que resistem como mulher Medindo a força do infortúnio E a oração de um campo de inhame Atada a curar as feridas da fome Os abortos A repintar a pele dos homens A encher o desastre histórico Em solidão Em solilóquio de rio sem fôlego Em batalha milenar contra os soluços Disposta continuamente ao recomeço À força silenciosa da semente Em resistência concedida aos tambores Aos exércitos dos canaviais Aos remos do sofrimento Ao sangue dos areais Às sensitivas de pálpebras ultrajadas Ao torneio sem piedade do sol Em resistência sob as gamas do crioulo Uma só língua nos diz Ela é filha dos ciclones
Solo de ilhas Solo de ilhas caimãs Solo de ilhas virgens Solo de ilhas borboletas Solo de ilhas polvos Solo de ilhas de montanhas azuis Solo de ilhas désirades Solo de ilhas santas Solo de ilhas romã Solo de ilhas tartarugas Solo de ilhas viúvas Solo de ilhas órfãs
Ilhas belas como os camelos luminosos Que pastam as ondas Como um tiro de bolas de gude novas Como os olhos verdes de uma serpente do mar Como bancos de ouriços frescos Como mamilos invertidos do sonho Solo de ilhas Desde muito tempo partimos E chegamos na varanda das ilhas E recomeçamos a infância Recomeçamos o começo de todas as coisas Rochas gravadas cantavam a morte Mas nós escolhemos viver Beber a água dos mangues Escavar as lagoas Esconder nossos jardins nas alturas E enterrar vasilhas para nossos sonhos Plantações cantam a morte Mas escolhemos viver Afinar os tambores em nossos corações Tomar emprestado o violão do vizinho Riscar os bambus E inventar a vida Nós escolhemos renascer Ressuscitar o cimo dos cerros Nomear as plantas Batisar os animais Fazer cantar as árvores Governar o orvalho Recolocar a vida em seu lugar no caos Suportar todas as mortes Acender todas as vidas E desposar nossas ilhas Como as mulheres soberanas Vestindo alto sua coroa de mar Parimos línguas Danças de relâmpagos
Sabores de ilhas Nós salvamos a vida E eis-nos aqui Solo de ilhas de blues das Américas Solo de ilhas sobre os ombros os vulcões Solo de ilhas famintas de fruta-pão Solo de ilhas enraizadas no mundo Solo de ilhas plurais Mosaicos multicores Carta ao universo As ilhas são os berços onde sonham os continentes Garrafas ao mar Lâmpadas de sal Boias de luz Fogos de mar O mundo todo cabe numa ilha O mundo é o futuro das ilhas
[Ernest Pépin. Lamentin, Guadalupe, 1950. Poeta, novelista e jornalista. Criou os programas literários Anagrama, El compañero de la vida y Club de lectura. Preside a Fundación Alejo Carpentier. Autor de Au verso du silence, 1984; Salve et salive, 1986; Boucan de Mots Libres / Remolino de palabras libres, Havana, 1991; Babil du songer, Kourou, 1997; Africa-Solo, Ivry-sur-Seine, 2001; Dit de la roche gravée, Montreal, 2008.
[Tradução: Elisa Andrade Buzzo]
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